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A CLINICAL CASE

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Illustration for magazine 'Contos do Absurdo'.

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A Contos especial está quase saindo! Mais um mini-conto:

UM CASO CLÍNICO

Conto de Alexandre Winck

Ilustração de André Martuscelli do Amaral

Foi preciso colocar o sujeito numa camisa-de-força. Muitos podem achar isso um método bárbaro e ultrapassado, mas durante o furor de um surto, o paciente pode machucar ou mesmo causar sua morte e a de outros. Às vezes, é necessário restringí-lo, pelo menos até ser possível aplicar um sedativo.
Lá estava o doutor Valter diante de seu paciente, sentado diante da mesa de seu consultório, tenso e arredio, mas controlado. Damarco Licaon, 27 anos, funcionário público, casado, tipo físico esquálido, alto, rosto de formas equinas, sobrancelha grossa formando uma única linha, como uma grande taturana sobre os olhos inquietos. Com quinze anos de experiência, não era a primeira vez que o psiquiatra encarava um caso semelhante. Mesmo assim, sabia que seria difícil.
- Se sente melhor agora?
- Melhor quer dizer dopado, né? Então acho que sim, tô bem melhor.
- Por favor, senhor Licaon. É importante que o senhor entenda. Esta é uma clínica psiquiátrica séria e moderna, não é um hospício de novela nem de filme. O senhor não vai ver pacientes dopados o tempo todo perambulando com olhar de peixe morto pelos corredores. Trabalhamos com diversas técnicas de terapia comportamental e ocupacional. Sim, usamos medicação quando é necessário. Infelizmente, no caso do senhor, foi preciso, pelo menos naquele mom...
- Não vem com palhaçada! Para aí mesmo. Só tem uma verdade aqui. Podemos ficar anos discutindo se papai me amava ou não. E ele me amava bastante, se quer saber. Posso montar quantos bloquinhos o senhor quiser. O que interessa é que o senhor não vai acreditar em mim.
- Eu acredito. Acredito em você, Damarco. Acredito que tudo que você vê, ouve, cheira, sente, é totalmente real pra você. Acred...
- Eu vou virar um lobo! Nada que você disser vai mudar isso. Nenhum remédio vai curar isso. Um lobo me mordeu na lua cheia. Eu tenho a maldição. Sinto ela correndo no meu sangue. Hoje é noite de lua cheia. Já me sinto diferente. Escuto gente batendo a colherinha do café no corredor. Cheiro o croissant de frango com catupiry que o senhor comeu antes de vir pra cá. Já vai anoitecer. O que vocês tem que fazer é me trancar num quarto, Um quarto todo de aço, se puder. Vai acontecer. E muita gente vai morrer. Incluindo o senhor.
- Bom, primeiro, vou dar crédito que a sua audição e olfato são muito bons mesmo. Só que eu vim correndo pra cá e não escovei os dentes. Devo estar com bafo ainda. Esses corredores têm muito eco. Segundo, eu já vi o seu caso antes. Isso é um distúrbio raro. Se chama Licantropia Clínica. Apesar do nome, não precisa ser um lobo. Pessoas acreditam totalmente que se transformaram ou estão no processo de se transformar em animais. Em alguns casos, um lobo, sim. A pessoa tem surtos, chega mesmo a imitar o animal, rosna e tudo mais. São ilusões, Damarco. Alucinações extremamente realistas. Mas não passam disso.
- Que horas são agora?
- Quase sete da noite, acho. Por quê?
- Olha pela janela.
Doutor Valter se virou e viu,e pela janela, uma belíssima, majestosa lua cheia saindo de trás das nuvens, quase como se tivesse ensaiado uma entrada triunfal para aquele momento.
- Damarco, o fato de s...
Mal o doutor começou a falar, Damarco começou a fazer um som de rosnado, como de um cão feroz percebendo a aproximação de um estranho. Seus olhos começaram a arregalar numa expressão de fúria, sua respiração tornou-se ofegante, seu rosto pálido enrubesceu, todos seus músculos pareceram retesar ao mesmo tempo. Ele mostrou os dentes, suas mãos segurando os braços da cadeira, como que preparando o bote. Por uma fração de segundo, doutor Valter quase juraria que viu pelos crescer em seu rosto e suas feições começando a deformar...
Então Damarco simplesmente pulou em cima do psiquiatra, tentando abocanhar sua garganta. Rosnava como um animal, agarrava com uma força surpreendente para seu tipo físico... mas ainda era humano. Nenhum sinal de transformação sobrenatural, apenas a mutação mental e física da loucura. Mesmo assim, sua boca chegou a centímetros da carótida de sua vítima. Felizmente para Valter, ele era prevenido o bastante para ter uma seringa com um forte sedativo na gaveta de sua mesa. Conseguiu pegá-la antes de Damarco derrubá-lo de sua cadeira e conseguiu aplicar o sedativo antes que o ensandecido paciente causasse estragos mais graves. O licantropo clínico sentiu sua mente borrar e seus músculos relaxar, teve um momento como se flutuasse na névoa e então adormeceu de vez.
Horas depois, Damarco acordou deitado em uma cama, ainda mais dopado que antes. Sentia uma calma que sabia que não era sua e sim dos medicamentos. Está deitado numa cama em um quarto, não numa cela acolchoada. Esse método caiu em desuso na psiquiatria moderna. Mas está medicado, grogue, não consegue sentir a raiva que sabe que tem latejando no fundo de sua mente. Diante de si, doutor Valter apenas observa. Os hematomas no rosto e pescoço do psiquiatra não alteraram a calma técnica e clínica em sua voz.
- Oi, Damarco. Espero que esteja melhor. Eu te disse. Você não é um lobisomem. Você sofre de uma doença mental muito grave. Eu sabia disso antes de você me atacar. Não porque sou um racionalista cético. Não porque monstros não existem. Mas porque um lobisomem reconhece o outro. Você não é um de nós.
Damarco tentou sentir pavor ao ouvir isso, mas estava dopado demais. Suas emoções estavam vagas, dormentes, um mero eco se esvaziando no fundo de seu ser. Sem conseguir esboçar qualquer reação, nem em seu rosto, ele assistiu passivamente enquanto o psiquiatra começou a rosnar ainda mais alto que ele fizera. Todas as mesmas alterações físicas se manisfestaram, mas então seus pelos cresceram, suas feições, seus músculos, tendões e ossos deformaram-se com sons nauseantes. Seu jaleco rasgou-se até quase a nudez, limitada apenas pelo topo da calça de linho. O médico de voz metódica era agora um colosso selvagem de dois metros e meio de altura, seus olhos pura luxúria de sangue. Mas ele ainda falava calma e pausadamente, apesar do tom arranhado e cavernoso.
- Os verdadeiros filhos da noite não são vítimas de nada, senhor Licaon. Somos mais donos de nosso destino do que vocês, encarcerados por suas contas, por seus patrões e governos, por seus códigos sociais sem sentido. Nós corremos pela noite livres, puros e invencíveis.
Ainda embotado, Damarco encontrou as forças para questionar a criatura.
- Se-se eu sou só um doente mental mesmo... como... como vou saber que você é real?
- Não vai. Os relatos de sintomas que sua família nos passou mostram que sua licantropia é a expressão de surtos psicóticos ligados à esquizofrenia. Seus sentidos percebem o que não existe. E você sabe o que é esquizofrenia. Talvez eu seja real. Talvez não seja. Essa é a sua verdadeira maldição, Damarco. A perda de si mesmo, da identidade, da realidade. De saber quem você é e como é o mundo à sua volta. Talvez para sempre.
A criatura colocou-se em suas quatro patas e galopou com cegante velocidade, arrebentando a parede de concreto do quarto como se fosse de papel. No outro dia, o doutor inventaria mil possíveis explicações para o buraco... se ele realmente estiver lá. Damarco ficou sozinho no quarto. Sozinho dentro de sua mente perturbada e perdida.
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